domingo, 14 de outubro de 2012

VELHOS ALEGRES CYRIOS

O Círio volta a passar, cortado, amputado, dilacerado, hoje do Círio quase sempre se destacam a dor, o sacrifício, o sofrimento dos promesseiros.
Mais nem sempre foi assim, até que a imprensa urubu, que só se interessa por tragédia, morte, sofrimento e destruição, para manter as pessoas em estado de sítio mental, passasse a contruí-lo desta forma.
O Cyrio era uma festa, alegria, encontro de um povo com sua identidade, com seu DNA mitocondrial, aquele que herdamos de nossa mãe, onde, portanto, éramos todos irmãos e festejavamos e bebíamos e comíamos e dançamos a marujada, afinal a Virgem de Nazaré foi sempre protetora dos navegadores. Vasco da Gama, antes de sua transviagem que girou o cabo das Tormentas e torno-o da Boa Esperança, foi à Nazaré pedir boa viagem.

Eu sempre vi o Círio como festa, era uma festa na casa do meu avô, a chegada da corda era anunciada: "lá vem ela" e iam todos às janela. As mulheres com terço, minha bisavó colocava até a mantilha, os homens com copos de cerveja ou de uisque.
Passavam as autoridades acenando, os bispos rezando e depois triunfante belaberlinda flutuando, navegando levíssima naquela espuma de gentes.
Na corda os promesseiros gritavam animados pelos dobrados das bandas que sempre tocavam o "lírio mimoso", algazarra, alegria, êxtase que explodia em palmas. Uma prima de mamãe, com voz de soprano puxava um "Viva Nossa Senhora de Nazaré" em tom agudíssimo que superava aquela barulhança e paralisava todos:

VIVA!!!

Ela prosseguia:
VIVA A MÃE DOS PARAENSES!
Eram menos a responder, o apito do delegado Orlando Souza fazia girar a roda da arrebatadoura-arrebentação.
As mulheres ainda choravam, os homens giravam a cascavel de gelo no copo do uisque Cavalo Branco.
As crianças disparavam a brincar com seus brinquedos de miriti.
Meu avô pedia um uisque, só bebia depois que a santa passasse.

Tempos depois começaram a maldar, dizer que aquela alegria do pessoal da corda mão era vera. Era da parte do demo. Era orgia provocada pela "mardita de Abaeté" que dos fundos das canoas paradas no Ver-o-Peso subia até as cabeças por canecos de alumínio e potes de barro e a seu modo cumpriam o conselho bíblico de dar de beber a quem tem sede. Aquela água milagrosa saciava a sede dos espíritos com exuberante alegria e reconfortava os corpos.

Quando tudo isso quedou-se quebrado com os potes de barro e finou-se esta alegria primeva, insubordinada, indígena.

Foi então inventado o promesseiro sofredor, o coitadinho.

Quem já viu alguém sair do médico com o parecer: "vocês está curado, leve vida normal" pagar a consulta chorando de tristeza?
Só se for de emoção, alegria.

Quem, vivendo anos pagando leoninos juros bancários, no dia que se liberta deles, sofre profunda depressão?

O sentimento do promesseiro que acredita ter recebido um milagre é de alegria.
Pagar a dívida-promessa é um ato de dignidade, de altivez, se for difícil, heróico.
O desafio do promesseiro é o mesmo do atleta: chegar, vencer, cumprir sua promessa.
Por que nós tratamos os atletas com adimiração, e os promesseiros da corda com piedade?
Por que dos atletas se valoriza mais os sorrisos e a comemoração da vitória do que as dores, sem as quais não se vence?
Por que vemos atletas como heróis, apesar de sofrerem tanto, de levarem vida espartana enquanto os promesseiros tratamos como coitadinhos?
Se eles estão alí é porque acreditam que venceram, que conquistaram uma graça por intercessão da Senhora de Nazaré e vêm publicamente manifestar, pagar sua dívida, sua promessa feita por livre e expontânea vontade.

Infeliz, coitadinho sou eu e tantos de nós que fizemos promessas para ganhar sozinhos a mega-sena acumulada e não fomos atendidos.

José Verríssimo um dos homens mais lúcidos que nasceu nesta terra achava o Círio bárbaro, grotesco, defendia que "para honra e glória de nossa civilização o Círio deveria ser extinto".
Por outros caminhos o círio de hoje é mais "civilizado", menos "bárbaro", do que Verissimo condenou, agora movido a água benta em vez de cachaça.
Mas nesta contenda eu fico com Oswald de Andrade no Manifesto Pau Brasil:
BÁRBARO E NOSSO.

P.S.: Depois do promesseiro-coitadinho surgiu o promesseiro-espetáculo, aquele que faz de tudo, até sofrer, para ser flagrado palas cameras de tv.

Obs: reconheço que o texto está reducionista, o objetivo é enfatizar que o "promesseiro sofredor" é uma construção recente da mídia, possivelmente quando o Círio começa a ser transmitido pela tv. Antes a dimensão da festa, da alegria,predominava.

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